Flávia Telles
Segundo dados da REPU, Rede escola pública e Universidade, houve uma redução de 35% das disciplinas das ciências humanas na rede estadual de educação em São Paulo nos últimos 5 anos, uma redução decorrente do novo ensino médio a nível federal e dos currículos dos governos estaduais que agora ganham um novo capítulo com a matriz curricular de Tarcísio para 2025. Esse dado escandaloso é uma expressão do aprofundamento ao que podemos chamar de dualidade estrutural da educação, o abismo entre uma educação para o prosseguimento dos estudos e uma educação para o trabalho, precário, diga-se de passagem, o que se combina com o projeto de país da precarização do trabalho e da violência policial que estamos vivendo. Por que o ataque às ciências humanas é tão importante para essas transformações?
A educação capitalista é marcada pela velha dualidade estrutural, o fato de que alguns têm uma formação para prosseguir os estudos e outros têm uma formação com o objetivo de se ligar ao trabalho. Essa dualidade é parte constituinte da divisão social do trabalho no sistema capitalista, característica de uma sociedade com antagonismo de classes e em que ocorre a especialização da técnica, produzindo assim uma divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Ou poderíamos dizer de forma atual, o trabalho do pensamento e do conhecimento e o trabalho cada vez mais precário, uberizado e da escala 6×1. É a naturalização das relações de produção capitalista no interior dos sistemas de educação.
Na sociedade de classes, a educação e a formação são sempre submetidas às necessidades das relações capitalistas de produção, podando o indivíduo das possibilidade de uma formação integral e omnilateral, como defendeu Marx. Hoje, além de identificar que nossa educação é marcada por essa dualidade, é fundamental ver que os projetos de educação buscam cada vez mais aprofundar essa dualidade estrutural e que há um grande tensionamento, em especial nas disciplinas que podem oferecer uma perspectiva histórica, social e política mais abrangente, como são as disciplinas de ciências humanas: história, geografia, sociologia e filosofia. O novo ensino médio (NEM) talvez seja um dos projetos que mais revelam isso, já que no interior do currículo busca fragmentar uma educação da formação geral básica e outra educação para a formação do trabalho, flexibilizando o currículo e impondo itinerários formativos, feitos para treinar os estudantes ao trabalho precário, e há com ele uma redução drástica da formação básica, sobretudo das ciências humanas.
Ciências Humanas, para quê? O país da precarização do trabalho e da violência policial
“No meu tempo, o colégio público me ensinou matemática e português, e é por isso que eu tô aqui. Por isso que eu fui juiz federal, secretário de Estado, é porque eu sei matemática e sei português… E a turma do sindicato, fica dando aula vagabunda de filosofia e sociologia para que vocês não aprendam nada”, essa fala de revirar o estômago é de Fábio Pietro, secretário de Justiça e Cidadania do governo Tarcísio em São Paulo, e se plasmou em política estadual de educação.
“Entre 2020 e 2025, todas as áreas de conhecimento tiveram cortes de carga horária. A mais prejudicada foi a de Ciências Humanas, com uma diminuição de 35,1%. Na prática, os/as estudantes perderam 253,0 horas da sua formação em Ciências Humanas ao longo dos três anos do Ensino Médio. Considerando as quatro disciplinas de Ciências Humanas, as maiores perdas foram em Sociologia e Filosofia, com reduções de 62,9% da carga horária total de ensino”, essas são afirmações da recente nota técnica da REPU. Com ela, é possível ver a redução drástica das disciplinas de Ciências Humanas que estamos assistindo nos currículos, em especial em São Paulo, defendida pelo secretário. Mas analisemos o que ocorreu de 2020 até aqui.
O novo ensino médio, aprovado em lei em 2017 como uma das primeiras reformas do governo golpista de Temer, foi um ataque à educação que buscou alinhar os currículos escolares ao novo projeto de país que estava em curso, um país de ainda maiores ataques que aqueles que os governos anteriores do PT vinham fazendo, mais precarização e novas formas de exploração do trabalho. Para isso, foi essencial diminuir a formação geral básica do estudante e retirar a obrigatoriedade da disciplina de sociologia e filosofia de todos os anos do ensino médio, barateando e aligeirando a formação, e adicionando conteúdos que fortaleceram a lógica individualista, meritocrática e empreendedora dentro da educação. São Paulo foi o estado onde se deu esse processo de forma mais acelerada, primeiro pelas mãos de Doria e de seu secretário de educação, Rossieli, que hoje tem que se enfrentar com a fúria do movimento indígena e dos professores no estado do Pará, e agora pelas mãos de Tarcísio e Feder, secretário que veio do Paraná para ampliar a privatização, a financeirização da educação, o assédio moral e a precarização em São Paulo.
Com isso, os governos vieram fazendo suas demagogias, mas o fato é que todo professor sabe que a escola passa por uma modificação extrema no seu conteúdo. Modificando também a percepção dos estudantes sobre seu sentido. Querem que os professores sejam meros condutores de conteúdos como resiliência, amabilidade, meritocracia e empreendedorismo, conteúdos que sabemos que uma visão social e histórica sobre a formação do Brasil, a escravidão, a colonização, a formação urbana, o papel das grandes potências internacionais na espoliação do mundo e etc, podem questionar, e por isso buscam reduzí-los. Além disso, vieram impondo o uso de plataformas digitais que buscam esvaziar as relações humanas e sociais dentro da escola com o objetivo de que os estudantes sejam passivos, controlados, inclusive aumentando os projetos de escolas cívico-militares para isso.
Todos esses elementos são um ataque a todas as disciplinas da formação básica, mesmo as de ciências da natureza e matemática, que cada vez mais perdem uma dimensão social e crítica e ganham uma dimensão tecnicista e prática. Mas ao atacar os conteúdos críticos, históricos, sociais, além de objetivamente reduzirem as aulas, vão reduzindo o sentido das ciências humanas nas escolas. Por isso, é nefasta a não revogação do novo ensino médio, e a “reforma da reforma” do governo Lula-Alckmin de 2024, por mais que indique um aumento na carga horária da formação geral básica. Ao manter a formação separada entre uma formação geral básica e uma formação com conteúdos para o trabalho precário, mantém o abismo da dualidade estrutural no currículo e, com isso, mantém também o ataque às ciências humanas.
O governo Lula-Alckmin não foi capaz de revogar as reformas por dois motivos centrais. Um é que o MEC de Camilo Santana está recheado de privatistas da educação, não à toa o Todos pela Educação, grupo que conta com participação de Itaú UniBanco, Instituto Ayrton Senna, Fundação Lemann, e que teve Haddad como seu sócio-fundador, foi parte de criar o NEM e agora elogiou a “reforma da reforma” e jamais aceitariam revogar a reforma que eles criaram. A segunda é que essa reforma também precisa existir para alinhar a educação ao projeto de país que a própria frente ampla sustenta, que precisa do barateamento da força de trabalho para os capitalistas, por isso aligeira e diminui os custos da formação escolar, e aplica o projeto do ajuste fiscal que corta bilhões da educação e saúde com o arcabouço fiscal para entregar nas mãos dos banqueiros e capitalistas. Trata-se do projeto da escala de trabalho 6×1, da terceirização, da uberização e da entrega do maior plano safra da história para o agro enquanto sofremos com a depredação capitalista da natureza. O projeto da conciliação de classes.
Mais um exemplo de como esse projeto fortalece a extrema direita é o fato de que ao governo Lula-Alckmin não ter revogado integralmente o novo ensino médio, Tarcísio apresentou um novo currículo que foi capaz de fazer aquilo que parecia improvável: piorar o currículo do novo ensino médio e avançar sobre o ensino fundamental. Com a Resolução 84/2024 e 85/2024, o governo Tarcísio estabeleceu a nova matriz curricular de 2025 que se estende dos anos finais do ensino fundamental ao ensino médio. Para ilustrar, segundo dados da REPU, o novo currículo vai significar uma redução de 28,3% de carga horária de Ciências Humanas no ensino fundamental regular, 25,9% a menos em história e 30,5% em geografia.
No EJA e no Ensino Médio noturno em São Paulo, apesar da nova matriz não reduzir as aulas, já há uma redução com os currículos anteriores e o NEM que é drástica. Filosofia e Sociologia tiveram cortes de 70%; História, de 50%; e Geografia, de 40% desde a aplicação do NEM, no ensino médio noturno. Além da redução das Ciências Humanas, ainda há uma carga horária que o estudante cumpre em modalidade à distância, ampliando ainda mais a precarização dos estudantes trabalhadores.
Além disso, essa redução atinge em cheio o trabalho docente, com professores contratados desempregados em massa, em especial os de Ciências Humanas e professores efetivos com sua carga horária de trabalho ainda mais precarizada, dividindo-se entre várias escolas para compor sua jornada de trabalho. A precarização para o professor de sociologia por exemplo é tão grande que, segundo dados da REPU, de um contingente de 4500 professores de Sociologia da rede estadual de São Paulo, 74,6% são temporários/as e apenas 25,6% são efetivos/as.
Toda essa realidade também serve para alinhar a educação paulista aos planos do governo da extrema direita. Terminamos o ano com o banho de sangue de Derrite e Tarcísio contra a juventude negra, fortalecendo a repressão para aumentar a divisão social, o racismo, e assim também a exploração do trabalho em São Paulo. Seu governo, que vem promovendo privatizações históricas, como no Metrô, na Sabesp, CPTM, e nas escolas, com financiamentos do BNDES, vem aprofundando os ataques às Ciências Humanas para uma educação mais alinhada a esse projeto, um exemplo é a própria aplicação da lei 10.639, que prevê aulas com conteúdos de ensino de história afro-brasileira e africana nas escolas, que amplia a reflexão sobre o racismo e poderiam ser parte de um questionamento maior a violência policial, mas que com menos aulas de história e geografia serão ainda mais negligenciadas nos currículos.
Portanto, esse ataque às ciências humanas aprofunda ainda mais a dualidade estrutural da educação num âmbito da própria escola e do currículo, com a separação ainda maior entre a formação geral básica, cada vez mais atacada, e essas disciplinas como liderança e educação financeira. Em outro âmbito, a dualidade também se aprofunda no fato de que as escolas particulares vão desviando dessas reformas, e mantendo disciplinas que nas escolas públicas são cortadas e que depois são cobradas no filtro racial e social do vestibular. Ou seja, a despeito de todas as propagandas sobre as Provas Paulistas e a entrada dos estudantes nas universidades, também aumenta a desigualdade educacional e poderíamos dizer o abismo entre as universidades públicas e as escolas públicas.
Professores, estudantes, intelectuais e a comunidade escolar: uma trincheira em defesa das Ciências Humanas
Se é fundamental para as necessidades capitalistas atacar a formação básica, ampliar conteúdos individualizantes e da ideologia burguesa, é necessário atacar disciplinas tão fundamentais para uma perspectiva mais abrangente dos processos sociais. Portanto, é também fundamental defender as Ciências Humanas nos currículos escolares, com a revogação da resolução de Tarcísio e integralmente do novo ensino médio e mais do que isso, deve estar combinado a defender uma perspectiva educacional que busque cada vez mais questionar essa dualidade estrutural da educação, rompendo com as visões que buscam enclausurar a formação do indivíduo do ponto de vista apenas escolar e que se ligue a questionar a sociedade de classes e as relações capitalistas de produção que produzem essa divisão.
Marx, como parte de sua crítica feroz à sociedade de classes, já buscava enfrentar essa dualidade do mundo do trabalho e apesar de não ser um teórico da educação nos ofereceu uma concepção de educação que supera essa divisão, a educação politécnica. Uma educação que forme para a educação intelectual, compreendendo o conjunto dos processos de conhecimento que a humanidade foi capaz de produzir; para a educação corporal, que significa o conhecimento sobre o próprio corpo em seu sentido social, físico e biológico; e a educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais. Ou seja, aqui o indivíduo é compreendido de forma integral numa concepção de educação que visa formar um sujeito social que pensa, critica e produz coletivamente.
Apesar da ausência de uma perspectiva de unidade e de mobilização por parte das direções dos sindicatos que se submetem aos projetos da frente-ampla de Lula-Alckmin, a única forma de vencer Tarcísio e todos os ataques à educação e às ciências humanas é com a nossa unidade na luta. É esse caminho que buscamos apontar desde a subsede da Apeoesp de Santo André, que vem chamando os professores a se unificarem, inclusive articulando professores de outras cidades com ações contra Tarcísio e os ataques. Os professores, intelectuais da educação, estudantes, secundaristas e das licenciaturas, e toda a comunidade escolar estão convocados a essa trincheira que diz respeito não só as ciências humanas, mas a batalhar por uma educação universal, laica, plena aos estudantes e trabalhadores da educação, que significa defender uma perspectiva de superação dessa velha dualidade estrutural da educação capitalista.