Mário Teruya*
A transição que o Brasil vive hoje, decorrente da necropolítica imposta por quatro anos de desgoverno fascista, torna a tarefa do campo progressista mais complexa. A questão democrática volta à agenda principal daqueles que lutam contra a desigualdade estrutural, herança de nosso passado colonial marcado por mais de trezentos anos de escravidão e de uma estrutura agrária baseada no sistema de plantation. Este legado histórico resultou numa sociedade extremamente injusta, dominada por uma elite sem um projeto de nação soberana e resistente à emergência de sujeitos sociais que questionam o status quo. Não é por acaso, portanto, que o autoritarismo é um traço marcante da história brasileira.
Publicado em 1979, época em que os movimentos sociais em ascensão se organizavam num cenário político favorável às teses progressistas e ao questionamento da ditadura militar, “a democracia como valor universal”, texto clássico de Carlos Nelson Coutinho, influenciou várias lideranças de esquerda que lutavam para construir uma alternativa à “via prussiana”, que sempre marginalizou as classes trabalhadoras das grandes decisões políticas.
Na perspectiva de Coutinho, a democracia não é um simples princípio tático, mas um valor estratégico para a construção de uma sociedade mais justa. Portanto, a democracia real, concreta, deve superar a tese liberal clássica cujo atomismo contrasta com o desejo dos vários sujeitos políticos que coletivamente produzem os bens materiais, mas não usufruem da riqueza a que tem direito. A lógica liberal é fundada na competição e no lucro. E a “mão invisível” do mercado sempre pende para aqueles que detêm os meios de produção.
Malgrado os limites da tese liberal sobre a questão democrática, o resgate do seu valor universal é essencial para a organização dos vários grupos sociais, antes invisibilizados e agora chamados pejorativamente de “identitários”. Ainda que a pauta identitária da branquitude heteronormativa detenha a hegemonia da ideologia que permeia nossas relações sociais, a democracia liberal possibilita a disputa por paradigmas sociais mais inclusivos.
A esquerda tradicional sempre considerou a luta de classes como o motor principal da história, mas o multiculturalismo crescente nas últimas décadas pode contribuir para um diagnóstico mais preciso das transformações proporcionadas pelas próprias contradições do receituário neoliberal. Cabe às lideranças progressistas organizar a “síntese política dos vários sujeitos políticos coletivos” e construir a unidade na diversidade.
Mas como construir uma democracia substantivada de conteúdo socialmente justo num cenário de ascensão da extrema-direita, cujo modus operandi é baseado na violência escatológica e nas fake news? Esse é o grande desafio de uma esquerda que ainda não ajustou sua tática na chamada guerra cultural digital.
Ao estereotipar o eleitor incauto, que vota em candidatos fascistas, de “pobre de direita”, alguns setores do campo progressista cometem equívocos de quem efetivamente não compreendeu a complexidade dos tempos sombrios que vivemos. É preciso desvelar o caráter nefasto do extremismo fascista e, ao mesmo tempo despolarizar o ambiente político por meio de medidas concretas que atendam às demandas urgentes de uma população precarizada pelos anos de obscurantismo. Além disso, é mais sensato enfatizar a socialização da política não como mero desejo subjetivo, mas como condição necessária para a superação da alienação dos trabalhadores.
Nas lutas protagonizadas por inúmeros ativistas, a assertiva do romancista francês Romain Rolland e popularizada por Gramsci (“o pessimismo da inteligência não deve abalar o otimismo da vontade”) é um bom mote para mobilizar causas justas. O bom combate requer disposição para compreender as contradições da realidade concreta e também da capacidade subjetiva de incorporar uma consciência altruísta do mundo.
*Mário Teruya
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