Apesar de um mandato em que manter as Olimpíadas e a política separadas às vezes foi difícil — e no qual ele teve que lidar com alguns dos líderes mais controversos do mundo — Thomas Bach tem uma mensagem clara para seus sucessores durante um período incerto: certifiquem-se de que os Jogos fiquem de fora.
Por 12 anos, Bach supervisionou um dos períodos mais extraordinários da história do movimento olímpico – uma pandemia global com dois Jogos a portas fechadas, um escândalo de doping russo patrocinado pelo estado e um legado de mudanças que definiram uma era dentro de sua organização.
Esse período também viu os Jogos sendo sediados na Rússia, Brasil, Coreia do Sul, China e França em meio a eleições, guerras na Europa e no Oriente Médio e posturas transfronteiriças na Península Coreana.
Enquanto se prepara para entregar o bastão ao seu sucessor, Bach o faz com uma fé inabalável no poder da unidade e da neutralidade estrita, e com a confiança de que as Olimpíadas atualmente não enfrentam nenhum “desafio ou problema existencial”.
“O esporte tem que ser politicamente neutro, caso contrário não podemos cumprir nossa missão de unir o mundo inteiro. Você viu como funcionou perfeitamente em Paris, onde tivemos atletas de todos os territórios dos 206 Comitês Olímpicos Nacionais, mais a Equipe Olímpica de Refugiados, se unindo, vivendo juntos na Vila Olímpica, vivendo pacificamente juntos”, ele disse à CNN esportes, em uma entrevista exclusiva com Amanda Davies antes da seleção de seu sucessor.
“Você teve atletas da Rússia, da Ucrânia, você teve atletas da Palestina, você teve atletas de Israel, você teve atletas do Iêmen. As muitas guerras e crises neste mundo se unindo, vivendo juntas, fazendo um apelo pela paz juntos e competindo uns com os outros pacificamente e seguindo as regras sem nenhum incidente”, comentou.
A mensagem de Bach enfrentará um teste severo enquanto os Jogos Olímpicos de Verão se preparam para ir para Los Angeles em 2028. Eles o fazem contra o pano de fundo de um cenário político e social cada vez mais incerto e fragmentado nos Estados Unidos, que está passando por um momento de profunda divisão política – uma da qual as Olimpíadas não ficaram imunes.
O estilo de liderança direto e disruptivo do governo Trump contrasta fortemente com a missão diplomática e unificadora do COI, e essa combinação pode representar o maior teste em gerações para esses princípios protegidos.
Apesar das diferenças, o alemão de 71 anos está confiante de que o presidente Donald Trump — que estava cumprindo seu primeiro mandato quando 2028 foi concedido a Los Angeles — tem os melhores interesses dos Jogos em mente.
“Estou muito confiante no apoio do presidente Trump aos Jogos de Los Angeles porque o conheci como um defensor e promotor muito franco da candidatura de Los Angeles, e também pude sentir nessa troca que, no fundo, ele ama o esporte”, falou Bach à CNN.
“Espero que Los Angeles exponha os EUA como um país amante do esporte, e que os americanos possam viver sua paixão pelo esporte e pelos Jogos Olímpicos”, complementou.
A paixão de Trump pelos esportes não significa que os atletas sejam imunes às suas estratégias políticas de guerra cultural.
Entre seus pontos de discussão mais proeminentes está o desejo de impedir que mulheres transgênero compitam em esportes femininos, um tema que ele mencionou frequentemente durante a campanha eleitoral e no início de seu segundo mandato.
As regras de elegibilidade de gênero – e a participação de atletas transgêneros e com diferenças de desenvolvimento sexual (DSD) nas Olimpíadas e no nível de elite – é uma das questões mais polêmicas nos esportes no momento.
A implementação por Trump da ordem executiva de fevereiro intitulada “Manter os homens fora dos esportes femininos” foi acompanhada de avisos de que os vistos poderiam ser negados a competidores com destino a Los Angeles que não atendessem às interpretações de gênero do governo.
Mas é o fato de Trump ter como alvo atletas individuais que talvez tenha gerado o maior ponto de discórdia entre ele e o COI.
As boxeadoras medalhistas de ouro Imane Khelif e Lin Yu-ting – cuja participação em Paris se tornou um ponto crítico no verão passado – têm sido constantemente referenciadas pelo presidente, afirmando erroneamente que ambos eram homens que “fizeram a transição”. Isso se tornou um ponto crítico para um debate frequentemente mal informado sobre como as mulheres podem competir em esportes e, posteriormente, desencadeou uma onda de abuso transfóbico online contra atletas.
“É um fenômeno do nosso mundo. O que as mídias sociais fazem em tais casos?”, disse Bach. “Você tinha todo tipo de gente de todas as esferas da vida que estava pulando nisso sem ter ideia. Precisamos cavar um pouco mais fundo como neste mundo você pode realmente expor os fatos e então discutir esses fatos – e então como interpretar esses fatos”.
Os comentários de Trump foram feitos depois que a Associação Internacional de Boxe (IBA), apoiada pela Rússia, desclassificou Khelif e Lin do Campeonato Mundial de 2023 com base em testes de elegibilidade reprovados, e essas atletas mais uma vez tiveram sua participação examinada durante as Olimpíadas do ano passado.
A IBA e o COI têm compartilhado um relacionamento tenso e fraturado há anos, e essa rixa só foi exacerbada em Paris. No mês passado, a IBA iniciou uma ação legal contra Khelif e o COI sobre o primeiro ter permissão para competir nos Jogos, apesar de ser “inelegível”. O COI respondeu chamando isso de “apenas mais um exemplo da campanha da IBA contra o COI”.
Bach defendeu firmemente ambas boxeadoras durante o que ele diz ter sido uma campanha de desinformação liderada pela Rússia durante os Jogos.
“A impressão foi dada como se essas duas boxeadoras […] fossem atletas transgênero. Elas não são”, ele explicou. “Elas nasceram como mulheres. Elas foram criadas como mulheres. Elas têm competido como mulheres. Elas perderam lutas e elas ganharam lutas. Elas até competiram nos Jogos Olímpicos de Tóquio sem nenhum barulho”.
“Você pode ver que foi iniciado pelo chefe russo de uma federação internacional de boxe, da qual retiramos o reconhecimento por causa de problemas com finanças, boa governança, julgamento e arbitragem – a lista toda. E cuja expulsão então também foi confirmada pelo Tribunal Arbitral do Esporte (CAS), e então eles começaram, de repente, esse ataque em Paris”.
A CNN entrou em contato com a IBA para obter uma resposta à alegação de Bach.
Khelif já declarou sua aspiração de competir e ganhar medalhas em Los Angeles, com o Conselho Executivo do COI recomendando que o boxe faça parte do programa de 2028, após o reconhecimento provisório do World Boxing em fevereiro de 2025.
Com o aumento da politização, desinformação e discurso de ódio em torno de atletas trans, Bach se sente confiante de que a argelina estará segura em solo americano?
“Eu não teria medo porque, talvez eu seja muito ingênuo nisso, mas ainda acredito que, quando essa poeira baixar, as pessoas chegarão aos fatos”, revelou ele.
“O povo americano – e não apenas o povo americano, mas todos os milhões de espectadores; e quando se trata da mídia, até mesmo bilhões de espectadores – a receberão bem se ela quiser competir nos Jogos em Los Angeles”.
Sobre Putin e como lidar com líderes mundiais controversos
Assim como o sucessor de Bach terá que navegar na linha tênue entre defender os valores fundamentais do COI e confrontar diversas questões de contato, o próprio alemão está acostumado a lidar com os diversos interesses e motivações de líderes políticos do mundo todo.
Bach tinha um “relacionamento muito bom” confesso com o presidente russo Vladimir Putin durante as Olimpíadas de Inverno de Sochi em 2014, mas esse relacionamento azedou drasticamente com a descoberta de um programa orquestrado de trapaças nos Jogos e, depois, com a invasão militar em grande escala da Ucrânia pela Rússia.
Um relatório da Agência Mundial Antidoping (WADA) de julho de 2016 declarou que a Rússia administrou um programa de doping patrocinado pelo Estado durante as Olimpíadas de Inverno de 2014, enquanto uma atualização do relatório cinco meses depois concluiu que um “acobertamento sistemático e centralizado” beneficiou mais de 1.000 atletas russos em 30 esportes.
O relatório inicial disse que a Rússia se envolveu em “um ataque chocante e sem precedentes à integridade do esporte e aos Jogos Olímpicos”, manchando a reputação de potência do país no mundo esportivo.
O governo russo respondeu ao escândalo chamando as punições de injustas e um exemplo de sentimento antirrusso. O presidente russo Vladimir Putin disse em 2019 que a decisão de banir a Rússia de vários Jogos como punição foi “injusta, não corresponde ao senso comum e à lei”.
“Durante esses Jogos [em 2014], várias pessoas estavam pensando diferente sobre o que estava acontecendo na Rússia, mas então, com o escândalo de doping, elas destruíram tudo”, contou Bach.
“Então essa relação piorou cada vez mais e depois da invasão [da Ucrânia], tivemos que tomar novas medidas. E agora estamos em uma situação em que, na Rússia, sou [chamado] de nazista, então acho que isso diz tudo”.
Frequentemente retratados juntos durante seu tempo como presidente do COI, houve alegações de que o relacionamento de Bach com Putin fez com que ele não assumisse uma posição tão dura em relação à Rússia quanto alguns sugeriram que deveria. Apesar das sanções esportivas impostas contra a Rússia, os atletas do país ainda puderam competir nas Olimpíadas sob condições específicas nos anos que se seguiram ao relatório da WADA.
No entanto, Bach negou que seu relacionamento com Putin tenha tido qualquer efeito em sua tomada de decisão quanto à participação de atletas russos nos Jogos.
“De forma alguma, porque aplicamos os mesmos princípios que estamos aplicando a todos os atletas ao redor do mundo”, disse ele à CNN.
Sabendo o que sabe agora, Bach se arrepende de os Jogos terem sido realizados no resort de Sochi, no Mar Negro?
“Eu tinha que fazer desses Jogos um sucesso, apesar do fato de a eleição de Sochi ter acontecido muito antes da minha presidência [em 2007]”, explicou ele. “O próprio presidente Putin estava muito interessado em fazer dos Jogos um sucesso, e então os dois interesses se uniram. Eles foram eleitos e então aconteceram. Isso é história. Aconteceu. Você não pode corrigir a história”.
O COI permitiu que atletas russos continuassem competindo como atletas neutros individuais em Jogos recentes – embora sem hastear a bandeira nacional ou tocar o hino nacional.
“Tivemos muitos comitês olímpicos nacionais suspensos e eles estavam participando sob a bandeira olímpica ou outras bandeiras, e o mesmo aplicamos aos atletas russos em ambos os casos”, disse Bach, defendendo a medida.
A Rússia foi banida de todos os esportes coletivos nos Jogos Olímpicos de Paris do ano passado e seu caminho de volta ao grupo olímpico continua incerto.
A possível participação do país nas Olimpíadas de Inverno de Milão-Cortina do ano que vem será uma das primeiras decisões importantes tomadas pelo sucessor do alemão.
Bach deixa claro, porém, que as decisões tomadas no passado e no futuro devem continuar sendo tomadas tendo em mente os melhores interesses dos atletas.
“Não é sobre a Rússia. É sobre os atletas. Todos que estão seguindo as regras têm que ter o direito de participar dos Jogos Olímpicos, ponto final”, ele disse.
A participação nos Jogos foi um dos fatores motivadores que levaram Bach a promover uma série de mudanças definidoras dentro do COI – uma organização que ele acredita estar “ansiosa por reformas”.
No campo de jogo, o Rio 2016 marcou a primeira aparição de uma Equipe Olímpica de Refugiados para atletas deslocados, enquanto Paris testemunhou os Jogos com um número igual de homens e mulheres competindo.
Longe da competição, receitas futuras foram garantidas para tornar os Jogos acessíveis a um público mundial maior. Na semana passada, as Olimpíadas e a NBC anunciaram uma extensão de US$ 3 bilhões (cerca de R$ 17 bilhões) de seu acordo de direitos de mídia para os Jogos de Salt Lake City de 2034 e os Jogos de 2036.
Mas talvez seu legado duradouro transforme a forma como as cidades-sede são selecionadas, já que as Olimpíadas já estão garantidas até 2034, inclusive.
“Estávamos revolucionando a organização dos Jogos, tornando-os sustentáveis, adaptando os Jogos ao anfitrião e não o contrário”, falou Bach.
“Tivemos esses maravilhosos Jogos em Paris, que foram Jogos como imaginamos com a agenda olímpica. Ao contrário de antes, quando quase não tínhamos mais candidatos, agora, já para 2036 e 2040, temos um número saudável de dois dígitos de partes interessadas, e é isso que conta”, finalizou.
Fonte: www.cnnbrasil.com.br