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Comunidades terapêuticas têm violação sistemática de direitos

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Relatório que reúne resultados de fiscalizações em comunidades terapêuticas (CTs) do país aponta a existência de violação sistemática de direitos nesses locais. O documento, elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) junto ao grupo Psicologia e Ladinidades da Universidade de Brasília (UnB), foi divulgado nesta quinta-feira (27).

“É importante dizer que, nas 205 comunidades terapêuticas, que são objeto desses trabalhos analisados, em 100% [das unidades], os órgãos que fizeram as fiscalizações encontraram violações de direitos. Não tem exceção, não é caso isolado, é algo que se expande para todos”, afirmou a advogada Carolina Barreto Lemos, perita membro do MNPCT, em entrevista à Agência Brasil.

São situações de agressões físicas, ameaça com armas de fogo, privação de liberdade, castigos e trabalho forçado dentro dessas instituições.

O relatório faz sistematização e análise de fiscalizações já realizadas em comunidades terapêuticas por órgãos públicos, seja da administração direta ou indireta, incluindo conselhos federais de categorias como Psicologia e Serviço Social. “A ideia é ter um olhar panorâmico sobre o que o próprio Estado tem produzido a partir do seu trabalho de fiscalização desses locais”, explicou a advogada.

Foram analisados 20 documentos, contemplando 205 comunidades terapêuticas espalhadas pelo país, ao longo dos últimos anos.O primeiro trabalho que a gente encontrou é de 2011, que é do CFP [Conselho Federal de Psicologia], mas não foi um recorte temporal que a gente deu. Foi porque antes disso a gente não encontra, efetivamente, nada produzido”, pontuou.


Brasília (DF), 27/03/2025 - Coordenador do grupo Psicologia e Ladinidades da Universidade de Brasília (UnB), psicólogo Pedro Costa. Foto: Pedro Costa/Arquivo pessoal
Brasília (DF), 27/03/2025 - Coordenador do grupo Psicologia e Ladinidades da Universidade de Brasília (UnB), psicólogo Pedro Costa. Foto: Pedro Costa/Arquivo pessoal

Professor Pedro Costa coordena o grupo Psicologia e Ladinidades da UnB – Pedro Costa/Arquivo pessoal

Coordenador do grupo Psicologia e Ladinidades da UnB, o psicólogo Pedro Costa reiterou a conclusão do relatório de que violências, violações de direitos e irregularidades não são exceção, nem desvios, no contexto das comunidades terapêuticas, mas sim elementos constitutivos desse tipo de instituição.

“A partir desse relatório, a gente constata que há algo de violento no caráter asilar e manicomial das comunidades terapêuticas a despeito do que elas dizem de si próprias, e a despeito do que, inclusive, se encontra nas normativas como a Lei 13.840 [que trata do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas] que colocam que as CTs são [locais] de acolhimento apenas”, disse Costa, que é professor no Departamento de Psicologia Clínica da UnB, à reportagem.

Há uma contradição que atravessa todo o relatório, destacou o professor: “Os órgãos estatais estão apontando que as comunidades terapêuticas são instituições de violência, só que por outro lado o Estado brasileiro tem financiado cada vez mais essas instituições de violência.”

Violações identificadas

“Esse relatório reitera e corrobora o que tem sido tratado na literatura [em estudos científicos] sobre as comunidades terapêuticas, [classificando-as] como uma síntese, uma amálgama, de manicômios, prisões, igrejas e senzalas, sobretudo por conta da chamada laborterapia”, concluiu Pedro Costa.

Além do caráter manicomial, o psicólogo mencionou a incidência nas CTs, de forma generalizada, da influência religiosa e da chamada laborterapia, que, segundo ele, tem sido utilizada para ocultar trabalho forçado, não pago e até mesmo análogo à escravidão. “Foi encontrada também a questão da religião como um dos pilares constitutivos [das CTs]. Não só a presença da religião, mas da violência religiosa nessas instituições”, disse.

Os documentos evidenciam essa ocorrência do trabalho forçado das pessoas que contratam os serviços das comunidades terapêuticas. “Isso foi um demarcador realmente de todas as fiscalizações, de ter o trabalho como uma condição para estar lá. Não é um trabalho terapêutico, mas um trabalho de manutenção da instituição”, relatou a perita Carolina. Segundo ela, grande parte das unidades utiliza a mão de obra dos próprios internos de maneira não remunerada e forçada.


Brasília (DF), 27/03/2025 - Advogada Carolina Barreto Lemos, perita membro do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Foto: Carolina Barreto Lemos/Arquivo pessoal
Brasília (DF), 27/03/2025 - Advogada Carolina Barreto Lemos, perita membro do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Foto: Carolina Barreto Lemos/Arquivo pessoal

Advogada Carolina Barreto Lemos é perita membro do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) – Carolina Barreto Lemos/Arquivo pessoal

Ela citou uma das fiscalizações em que esteve presente, em 2023, em uma unidade localizada em uma fazenda.

“Os internos mantinham essa fazenda, faziam ordenha de vaca, cuidavam do porco, acordavam de madrugada, eram trabalhos extremamente extenuantes, saíam para pegar a lenha. Quem trabalhava na cozinha geralmente tinha uma carga extremamente pesada de trabalho, que chegava a 12 horas por dia. Isso é uma constante das CTs”, condenou a perita.

A privação de liberdade é outra das violações apontadas, que acontece em diferentes níveis, conforme apontou o relatório, inclusive sem a necessidade de grades. “Uma característica comum percebida foi o distanciamento das comunidades terapêuticas dos centros urbanos. Isso por si só pode gerar uma situação de privação de liberdade. O público geralmente é vulnerável, então não consegue sair com meios próprios”, disse Carolina.

Há situações mais explícitas de privação da liberdade, em que as pessoas são vigiadas e proibidas de sair do local. “Às vezes, os próprios internos são usados como vigias e fazem [o que chamam de] recaptura. Então, se a pessoa tentar sair, eles vão atrás e trazem de volta. O resgate [busca da pessoa em casa, à força] é uma prática que a gente viu em várias, que é efetivamente uma forma de sequestro, às vezes até com aval da família”, contou.

Em outros casos, as pessoas ou famílias desistem da permanência na instituição, ainda que o contrato seja por um período maior. “Muitas vezes, o que as CTs fazem é um jogo de chantagem, de dizer ‘se você for embora, vai ter que pagar uma multa sobre o valor do contrato’, utilizando essa artimanha de impor multas abusivas”, relatou a perita.


Brasília (DF), 27/03/2025 - Relatório elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), junto ao grupo Psicologia e Ladinidades da UnB, aponta violação sistemática de direitos em comunidades terapêuticas do país. Foto: MNPCT/Divulgação
Brasília (DF), 27/03/2025 - Relatório elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), junto ao grupo Psicologia e Ladinidades da UnB, aponta violação sistemática de direitos em comunidades terapêuticas do país. Foto: MNPCT/Divulgação

Privação de liberdade é uma das violações de direitos observadas em comunidades terapêuticas – MNPCT/Divulgação

Retrocesso

O professor Pedro Costa avalia que o financiamento público das comunidades terapêuticas representa um retrocesso em relação à reforma psiquiátrica do país e da política de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS).

“Quando há uma destinação de verbas públicas para as comunidades terapêuticas, que, além de tudo são instituições privadas, a gente tem necessariamente uma transferência do fundo público que deveria ser destinado aos serviços que [funcionam] de maneira não asilar, não manicomial, por meio da não violência.”

Ele acrescenta que, ao financiar as CTs, há uma deslegitimação e um enfraquecimento das próprias políticas que o Estado brasileiro preconiza, por meio do SUS e do Sistema Único de Assistência Social (Suas), e que são aplicadas pelos centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

“No âmbito da saúde mental, álcool e outras drogas, as comunidades terapêuticas [tem sido] o carro-chefe daquilo que a gente tem chamado de contrarreforma psiquiátrica. Um grande ataque à reforma psiquiátrica brasileira, até porque esse modelo vai na contramão daquilo que o SUS e a reforma psiquiátrica brasileira defendem”, disse.

Entre as consequências para as pessoas atendidas nesses locais, estão a aceitação e a naturalização da violência com uma roupagem de tratamento. Além disso, essas instituições se baseiam na abstinência como único horizonte possível, necessário e desejável, o que, segundo Costa, vai na contramão da redução de danos como paradigma. Ele aponta que essa conduta “aprofunda o moralismo e o reacionarismo na temática do álcool e outras drogas, que historicamente já é bastante conservadora”.

Transparência e regulação

A perita Carolina Lemos apontou ainda a falta de transparência para encontrar e acompanhar o trabalho das comunidades terapêuticas em funcionamento atualmente no Brasil, até mesmo daquelas que recebem dinheiro público.


Brasília (DF), 27/03/2025 - Relatório elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), junto ao grupo Psicologia e Ladinidades da UnB, aponta violação sistemática de direitos em comunidades terapêuticas do país. Foto: MNPCT/Divulgação
Brasília (DF), 27/03/2025 - Relatório elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), junto ao grupo Psicologia e Ladinidades da UnB, aponta violação sistemática de direitos em comunidades terapêuticas do país. Foto: MNPCT/Divulgação

Caso de automutilação com queimaduras de cigarro em comunidade terapêutica  – MNPCT/Divulgação

Levantamento conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado em 2017, encontrou um total de 1.963 comunidades terapêuticas no país.

“Como é algo da iniciativa privada, é muito difícil ter um mapeamento de CTs no Brasil, porque não tem essas informações disponíveis. Pelo menos as financiadas pelo próprio Estado deveriam ser de fácil acesso, em termos de uma transparência: ‘olha, a gente financia ou faz repasse de recursos para tais instituições’”, disse.

Há poucas normativas que regulamentam as comunidades terapêuticas e aquelas existentes são ruins, observou a perita, sendo a principal delas a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 29 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “É uma RDC que tem pouquíssimas exigências para o funcionamento de uma CT. Por exemplo, em termos de pessoal, a única exigência é um responsável técnico com ensino superior ou um substituto”, avaliou.

“Não há nenhuma outra previsão de, por exemplo, uma equipe multiprofissional. Da nossa perspectiva, é uma normativa extremamente solta, que não coloca exigências um pouco mais criteriosas”, acrescentou.

Já a Lei 13.840 de 2019, que altera a lei de drogas, tem um capítulo dedicado às CTs. Essa legislação coloca algumas exigências, como a necessidade de haver um plano individual de atendimento, o impedimento de as comunidades terapêuticas fazerem internação e a liberação para realizarem apenas o acolhimento das pessoas.


Brasília (DF), 27/03/2025 - Relatório elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), junto ao grupo Psicologia e Ladinidades da UnB, aponta violação sistemática de direitos em comunidades terapêuticas do país. Foto: MNPCT/Divulgação
Brasília (DF), 27/03/2025 - Relatório elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), junto ao grupo Psicologia e Ladinidades da UnB, aponta violação sistemática de direitos em comunidades terapêuticas do país. Foto: MNPCT/Divulgação

Administração de medicação controlada é uma realidade nas comunidades terapêuticas – MNPCT/Divulgação

Outro problema identificado na análise é que a Anvisa não considera as comunidades terapêuticas como estabelecimento de assistência à saúde, no entanto, há descumprimento dessa premissa.

“O que a gente vê, a partir desse mapeamento e da análise, é que é uma constante nas CTs o funcionamento como se fosse um serviço de [assistência à] saúde, dando medicação controlada e fazendo procedimentos que seriam da saúde.”

A Agência Brasil solicitou posicionamento sobre as conclusões do relatório ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, mas não obteve resposta até a conclusão da reportagem. O espaço permanece aberto para inclusão do posicionamento da pasta.

Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br

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