“Chama-se exílio quando a gente vai embora pequenininha, ou mesmo nasce lá fora? Exílio é saudade, é estar fora de sua pátria, longe de suas raízes e seus familiares. Eu nunca tive saudade do Brasil. Saí com 3 anos, minha única lembrança é dos dois coelhinhos que tínhamos em casa; saudades dos avós. E, no entanto… Somos a geração dos filhos de exilados”.
O relato faz parte do livro Crianças e Exílio: Memórias de Infâncias Marcadas pela Ditadura Militar, uma coletânea de narrativas de 46 pessoas que eram ainda bebês ou crianças quando seus pais foram perseguidos, presos, torturados, assassinados ou exilados por causa da ditadura militar. Esse capítulo, especificamente, foi escrito por Silvia Sette Whitaker Ferreira, que viveu no exílio dos 3 aos 18 anos de idade.
Lançado nesta semana, em Porto Alegre, pela Carta Editora, o livro reúne histórias de pessoas que conseguiram trazer à tona os traumas que sofreram por causa da ditadura militar. No entanto, ainda há muitos relatos como esses que não foram escritos, diz Nadejda Marques, uma das organizadoras da coletânea, ao lado de Helena Dória Lucas de Oliveira (foto).
“Trabalhamos com um grupo de 67 pessoas que foram crianças exiladas. Elas trocavam lembranças, fotografias e histórias do exílio. Também foram organizados encontros virtuais para ativação de memórias e motivação para a escrita das narrativas. Tudo foi feito com muito acompanhamento, cuidado e amizade entre os participantes cientes de que as memórias também poderiam trazer à tona traumas vividos. Das 67 pessoas do grupo, 46 conseguiram escrever suas histórias”, disse Nadejda, em entrevista à Agência Brasil.
Ainda há muitas histórias não foram escritas e não são conhecidas, acrescenta. “Não temos um registro oficial de quantas crianças foram exiladas do Brasil durante a ditadura, mas sabemos que o livro traz uma pequena amostra dessas histórias.”
Pesquisadora e professora de direitos humanos, Nadejda Marques também foi uma criança exilada e acabou contando sua história em um dos capítulos do livro.
“Sou escritora e já escrevi vários livros inclusive uma autobiografia chamada Nasci Subversiva, que conta como crianças eram fichadas e tratadas como terroristas ou subversivos durante a ditadura no Brasil. Saí do Brasil em 1973, quando tinha 15 meses. Fui exilada no Chile e depois refugiada política na Suécia após o golpe militar no Chile. Da Suécia, fui para Cuba, onde vivi entre os anos de 1974 e 1979. Em 1979, quando tinha 7 anos, antes de voltar ao Brasil, moramos alguns meses no Panamá, pois o Brasil não tinha relações diplomáticas com Cuba. O Panamá foi um país de exílio, mas também de transição para a nossa volta ao Brasil.”
Histórias
Cada capítulo do livro conta a história de uma dessas crianças que tiveram os pais assassinados, ou foram separadas da famílias ou integraram os grupos de presos políticos que foram trocados por diplomatas. A violência que elas vivenciaram nesse período foram muitas, marcando-as profundamente.
“As histórias contadas no livro são experiências de crianças que viveram durante o golpe no Brasil, foram exiladas, e muitas sofreram com golpes nos países de exílio – como Chile e Argentina. Muitas passaram por dois ou mais países de exílio. Algumas nasceram no exílio, outras tiveram um dos pais assassinados ou dados como desaparecidos na época da ditadura. Algumas crianças tiveram ambos os pais mortos ou desaparecidos, outras foram presas ou torturadas. A maioria voltou para o Brasil depois do exílio. Para algumas, o retorno foi definitivo, para outras, não”, destacou Nadejda.
Escrita sob a perspectiva das próprias vítimas, a coletânea expõe o impacto psicológico e social enfrentado por essas crianças que foram condenadas a viver longe de suas famílias e de sua pátria. Algumas precisaram mudar de nomes para viver no exílio.
“O que as crianças viveram naquela época ainda é assunto pouco tratado, pouco conhecido e pouco estudado. De certa forma, foram histórias invisibilizadas pela história oficial e negligenciadas nos processos de transição. O livro também é importante para lembrar que ainda há muito trabalho por fazer em termos de memória, verdade e justiça no Brasil. Ainda não conseguimos alcançar justiça nos casos de crimes cometidos pelo Estado. Ainda temos casos de pessoas desaparecidas durante a ditadura e ainda temos torturadores livres”, ressaltou a organizadora do livro.
Relatos de crianças vítimas da ditadura brasileira já foram apresentados em trabalhos das comissões da Verdade, que investigaram as violações de direitos cometidas durante esse período. Da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, por exemplo, originou-se o livro Infância Roubada, que traz testemunhos de pessoas que foram afastadas dos pais quando crianças ou os viram ser torturados. Há também casos de crianças, inclusive bebês, que sofreram torturas físicas e psicológicas praticadas por militares.
“Não há dúvida de que o exílio foi uma expressão da violência do Estado brasileiro. Antes do exílio, essas crianças foram submetidas a outras formas de violência, como perseguição a seus pais e familiares. Algumas testemunharam a prisão arbitrária dos pais, outras foram torturadas ou usadas para torturar seus pais. O exílio se soma a essas violências forçando a separação das crianças de familiares, amigos, escola e comunidades de forma traumática e abrupta e, em alguns casos, negando a elas o direito à cidadania”, enfatizou Nadejda.
Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br