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“Pronto pra guerra?”: a convocação de Tancredo rumo à redemocratização

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Na segunda-feira, 16 de janeiro de 1984, dia do primeiro comício das Diretas Já em São Paulo, o Jornal do Brasil publicou em manchete principal que Tancredo Neves estava conversando com governadores do PDS, partido do regime militar, com o objetivo de forjar uma aliança entre PMDB e PDS para as eleições indiretas.

Era um duplo e letal anátema: para o regime militar, então encarnado pelo governo João Figueiredo, por sentir o fel da traição fermentar em suas entranhas; para as oposições, que recém-iniciavam uma campanha que emocionaria o país na busca das eleições diretas. O texto era de minha autoria.

Naquela noite, quando Tancredo chegou ao palanque apinhado das Diretas Já no Anhangabaú, dezenas de jornalistas o fuzilaram com uma pergunta uníssona:

“É verdade?”

Ele respondeu numa retranca agressiva:

“Isso é coisa de um jornalista irresponsável, leviano e mentiroso!”

Eu não podia revelar minhas fontes, dois governadores do Nordeste, que me contaram sobre as conversas com Tancredo mediante compromisso estrito de off-the-record.

Publicar aquela manchete era um risco calculado: ela contava a provável verdade do ano seguinte, mas colocara em rota de perigo o mais pragmático projeto de redemocratização então em andamento do país; e sugeria que Tancredo pregava eleições diretas no comício, mas confiava mesmo nas indiretas.

Naquela noite, na redação do JB, enquanto na TV Tancredo me chamava de irresponsável, leviano e mentiroso, meus colegas me viam de costas e sabiam que era difícil virar de frente; sentado numa mesa, nunca me senti tão solitário, à medida que as palavras de Tancredo ecoavam pela redação e me arpoavam inapelavelmente. Nada a fazer: eu sabia que estava certo, mas não tinha como provar isto naquele momento.

Cinco meses depois, pedi demissão do JB e o então deputado pernambucano Fernando Lyra me convidou para trabalhar na assessoria de imprensa de Tancredo. Aceitei na hora. Lyra e o senador por São Paulo Fernando Henrique Cardoso me levaram até Tancredo, no escritório do Edifício Guanabara, no Setor Comercial Sul, em Brasília. Entramos, Tancredo remexia uns papéis. Lyra introduziu:

“Dr. Tancredo, este é o Carlos Marchi, de quem nós lhe falamos.”

Tancredo, gentil:

“Eu conheço o Marchi lá do Congresso, Fernando. Não precisa apresentar…”

E a mim:

“Pronto pra guerra?”

Eu disse que sim, claro, mas antes precisava dizer algo a ele para cumprir um dever de lealdade. Transitou pela expressão de Tancredo um certo incômodo, como quem preferia não. Fui direto ao ponto:

“Eu preciso lembrar ao senhor que eu sou aquele jornalista irresponsável, leviano e mentiroso que em janeiro publicou aquela manchete no Jornal do Brasil.”

Agora, sim, Tancredo pareceu se incomodar e voltou a remexer os papeis como óbvia tática diversionista:

“Manchete, que manchete?”

“Aquela manchete que quase detonou sua campanha para atrair o PFL, lembra? ‘Tancredo prepara sua candidatura [pela via indireta]’, era o titulão da primeira página.”

“Não estou lembrado. É coisa importante?”

“Para dar conta de meu dever de lealdade, é.”

De soslaio, vi Fernando Henrique fazer-me um esgar como quem diz “pare com isso”. Tancredo também notou – ele notava tudo, sempre, nada lhe escapava, estava sempre atento a tudo em volta, palavras, gestos, acenos, não deixava passar nada. Eu me calei. Ele pareceu finalmente se aliviar do incômodo e bradou:

“O importante é que vai ser uma guerra. Está pronto pra guerra?”

“Estou, dr. Tancredo.”

E começamos a conviver. Quando aquela aventura terminou, ele estava prestes a sentar-se na cadeira presidencial, eu nomeado por ele para a presidência da Empresa Brasileira de Notícias (EBN); dei-me conta, então, de que, naqueles sete meses de convivência, eu tinha aprendido mais do que em toda a minha infância e adolescência, mais do que nas duas faculdades que cursei, mais do que meus pais, a vida e a profissão haviam me ensinado.

Carlos Marchi • Arquivo pessoal

“Nós não temos direito de errar. Nem eu nem vocês”

Sempre foi de supor que Tancredo direcionasse sua atenção e sua lógica política preferencialmente para os grandes problemas nacionais, pensei um dia. Mas digo que não e provo. Uma tarde, quando a vitória já clareava o horizonte, ele me chamou ao gabinete:

“Soube que você está construindo uma casa muito bonita no Lago Norte.”

“É verdade, dr. Tancredo, uma casa projetada pelo Zanine, que é meu amigo. Peguei financiamento na Caixa.”

“Vai mudar quando?”

“Ah, a construção está meio atrasada, dr. Tancredo. E o trabalho não me dá tempo. Acho que vou mudar depois que o senhor assumir.”

Ele franziu o cenho e disparou:

“Mude agora.”

“Mas a casa ainda não tem porta, dr. Tancredo!”

“Mude já. Tire três dias de folga. Se for problema de dinheiro, eu consigo quem lhe empreste. Mas mude já.”

Parei para pensar: era óbvio que aquele não era um problema nacional. Era um problema do estrito âmbito pessoal de um assessor, mas podia, no breve futuro vitorioso, transformar-se em uma grande acusação – “Mal venceu, já está de casa nova, hein?” O candidato que seria eleito presidente era assim: aceso, atento a todas as minúcias que o cercavam, as dele e as dos outros, não apenas dos grandes problemas nacionais.

Um dia, numa conversa descompromissada com o pessoal do escritório, disse:

“Nós não podemos errar.”

Parou um pouco, pareceu ouvir de novo o eco do que dissera e constatar que não fora vocalizado com a devida solenidade. Franziu a testa, assestou expressividade aos olhos, espaçou levemente as sílabas e repetiu, pausando as sílabas:

“Nós não temos direito de errar. Nem eu nem vocês.”

Dias depois, num certo dia aziago, fui acordado por um telefonema do major Fourreaux, da PM mineira, chefe da segurança de Tancredo. Ele me contou que haviam arrojado uma bomba no nosso escritório de trabalho e transmitiu-me três orientações.

A primeira: ir para lá e não dar nenhuma opinião ou informação aos jornalistas que logo chegariam aos borbotões; não dar opinião, porque poderíamos cometer exageros ou equívocos; não dar informação, porque ainda não as tínhamos, embora a suspeita sobre o atentado fosse óbvia.

A segunda: a porta que dava acesso ao átrio dos elevadores deveria ficar fechada. A terceira: Tancredo chegaria às 11 horas, diria uma ou duas palavras aos jornalistas para minimizar o episódio – e ponto final.

A bomba incendiária, jogada de uma janela do prédio ao lado, calcinou a sala onde eu trabalhava – mesas, cadeiras, sofás, quadros, máquinas de escrever e uma pequena tribuna de onde Tancredo dava suas entrevistas.

Às 10 horas, a sala parecia um cenário de rua central: lotada de jornalistas que não tinham onde se sentar, que iam e vinham de lá para cá, especulando hipóteses as mais exóticas, caminhando sobre tacos calcinados, que estalavam como se ainda ardessem.

Exatamente às 11 horas a porta de entrada da sala abriu-se, a carinha sorridente e caricatural de Tancredo apareceu. Antes que alguém lhe fizesse uma pergunta incômoda, disparou:

“Acho que eles não gostam é de você, Marchi.”

Ato contínuo, fechou a porta e se foi, silenciando a romaria atrasada de perguntas que ecoou pelas paredes calcinadas e escorreu para o chão. Nada mais diria a respeito daquele atentado, embora muito lhe tenha sido perguntado.

*Carlos Marchi é jornalista e escritor

Fonte: www.cnnbrasil.com.br

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